Archive for the 'resenhas' Category

A presença singular de Sérgio Medeiros

A PRESENÇA SINGULAR DE SÉRGIO MEDEIROS

Escritor confirma seu papel de destaque nas letras contemporâneas com o lançamento de duas obras

RICARDO CORONA, ESPECIAL PARA O ESTADO – O Estado de S.Paulo (2/11/2013)

Sérgio Medeiros tem colaborado de maneira consistente para esticar a linha que aproxima a poesia brasileira do conceito de etnopoesia. Isto desde os anos 1990, quando visitou os bororos, “os maiores e os mais bem-feitos índios do Brasil”, nas palavras de Lévi-Strauss. Desta experiência-sintoma com os bororos, Medeiros nos deu a coletânea Makunaíma e Jurupari: Cosmogonias Amazônicas (2002) e não parou mais. É um dos tradutores, em parceria com Gordon Brotherston, do poema maia-quiché Popol Vuh (Séc. XVI).

Da sua poesia, destaco Alongamento (2004), O Sexo Vegetal (2009) e Totens (2012). Antes de se fixar em um sentido nuclear de obra, a sua poesia segue em múltiplas direções, experimenta outras formas, subverte visões e valores estáveis, implodindo mesmo com o cômodo, centrado e hegemônico conceito de “civilização”.

Pois Sérgio Medeiros acaba de lançar ao mesmo tempo dois livros: O Desencontro dos Canibais e O Choro da Aranha etc., confirmando essa presença singular na poesia brasileira contemporânea, com a translação de textos, a incorporação de oralidades e, sobretudo, uma transitoriedade infraleve entre literatura e infância. Livros envolvidos com o evento, com o rito, nos quais o autor opera com desmembramentos e relações fluídas com a etnopoesia. E com uma singularidade: o espaço da infância. Mas sem conotações estanques de faixa etária ou do sentido baixo da adaptação escrita de lendas orais.

Em O Desencontro dos Canibais, ao cambiar narrativas ameríndias, produziu dois eventos que se entrecruzam. Um é o do “canibalismo onírico”, porque há a referência da Lenda de Jurupari – Pedro Cesarino, na apresentação, adverte que se trata de “uma insólita transformação”. O outro é o da “infância grande”, à medida que Blanchot chamou de “espaço fascinado”. Veja-se neste breve conto: “Aparentemente a aranha se transformou dentro da flor num insignificante bolinho de fios rompidos – sobressai nesse conjunto, porém, um longo fio grisalho ao sol da manhã, estendendo-se da orquídea até uma escadaria próxima de pedra carcomida, princípio ou tentativa (abandonada?) de nova teia”. As palavras atribuem ao texto um momento aurático ou instante fictício e mítico da origem que marca a relação entre o eu e o mundo. É neste sentido que o espaço da infância produz diferença.

Em O Choro da Aranha etc., desde o título o infans se infiltra na linguagem como modo de construir o miniteatrinho dentro do poema. As subjetividades do detalhe, do mínimo, das coisas desimportantes e insignificantes, as quais, curiosamente, as crianças (assombradas por Henri Michaux) descobrem a sua potência: “…Sob a vassoura / Que passa leve / Na varanda // A minhoca sofregamente / Se enrosca // Escuro fiozinho úmido… // Cada vez mais / Encaracolado”. Outra singularidade é a figuração. Leia-se o capítulo “Jerônimo Tsawé (aparição urbana)”, que contém apenas um poema: “Enquanto os carros passam / Quase grudados // Um xavante / Na calçada // Apoiado num bastão / Como num totem // Olha tranquilamente / Para o lado de onde vem / Esse trânsito intenso // Como se mais nada almejasse / No abafado fim de tarde”.

Nas sábias palavras de Douglas Diegues, “continua a inventar em nossos dias a poesia brasileira do futuro”.

RICARDO CORONA É POETA E AUTOR DE CURARE (ILUMINURAS), ENTRE OUTROS

O CHORO DA ARANHA ETC.

Autor: Sérgio Medeiros

Editora:

7 Letras

(104 págs.,

R$ 28)

O DESENCONTRO DOS

CANIBAIS

Autor: Sérgio Medeiros

Editora:

Iluminuras

(96 págs.,

R$ 36)

A música da natureza na poesia de Sérgio Medeiros

 

Totens, de Sérgio Medeiros. Iluminuras, 184 páginas. R$ 44

Por Maria Esther Maciel*

“Totens”, do mato-grossense Sérgio Medeiros, é um livro estranho, que resiste às classificações de gênero e desafia nossos esforços de compreensão. Isso graças ao seu caráter nonsense, conjugado a um experimentalismo radical e a uma complexa rede de referências literárias, musicais, plásticas e etnográficas. Medeiros é um conhecido estudioso das cosmogonias ameríndias, tendo traduzido, com a colaboração do americano Gordon Brotherston, o longo poema maia-quiché “Popol Vuh” (Perspectiva, 2007). Organizou também a coletânea de contos indígenas “Makunaíma e Jurupari” (Perspectiva, 2002), além de ter escrito diversos ensaios que abordam esse universo. E o que é mais interessante: não deixou de levar toda essa experiência literário-antropológica para sua obra criativa, na qual também incidem influxos explícitos de James Joyce, Samuel Beckett e John Cage, visto que ele aprecia e estuda, com devoção, artistas e escritores de vanguarda. “Totens” potencializa, explicitamente, esse leque de referências. Daí a originalidade do livro e sua diferença em relação a tudo que se faz hoje no Brasil, em termos de poesia.

“Totens” apresenta-se como um livro duplo, com duas partes ao mesmo tempo autônomas e indissociáveis, que nunca se completam. Nessa incompletude, o conjunto afirma sua unidade paradoxal. Como o próprio título sugere, a base dos textos é a imagem do totem, na qual inexiste a separação entre o humano, o divino, o animal e o vegetal. Os limites entre o humano e o não humano são, assim, embaralhados o tempo todo ao longo da obra, causando estranheza aos que tendem a separar esses mundos em nome da razão.
Continue lendo ‘A música da natureza na poesia de Sérgio Medeiros’

O SOL DENTRO DA PISCINA, por Marcelo Coelho

Na semana passada, citei alguns versos de Vincent Katz, em que o poeta falava de chuva, de quaresmeiras e de sua mulher, “aqui comigo,/ à frente do mundo”. A sensação de estar “à frente do mundo” me pareceu adequada para este início de janeiro, e ainda dá tempo, acho, de lembrar alguns outros livros de poesia que também nos fazem olhar para diante.

Um dos maiores poetas da segunda metade do século 20, o romeno Paul Celan (1920-1970), escreve sobre lançar uma rede “nos rios ao norte do futuro”. Parece indicar, com esse verso misterioso, a necessidade de manter a esperança, ainda que a projetemos para um ponto inatingível, mais além de qualquer expectativa temporal concreta.

Pelo menos, é isso o que sugere o filósofo Hans-Georg Gadamer (1900-2002), em “Quem Sou Eu, Quem És Tu”, livro lançado há pouco pela editora da Uerj, no qual comenta passo a passo uma série de poemas de Celan. Lançar uma rede ao norte do futuro, diz Gadamer, é procurar lugares “fora dos caminhos e trajetos habituais, lá onde ninguém mais pesca”; quem lança a rede “aguarda o que está por vir, lá onde nenhuma expectativa de experiência consegue alcançar”.

Mas vale citar na íntegra o curto poema de Celan, na tradução de Raquel Abi-Sâmara: “Nos rios ao norte do futuro/ lanço a rede que tu/ hesitante lastreias/ de sombras escritas com/ pedras”.

Continue lendo ‘O SOL DENTRO DA PISCINA, por Marcelo Coelho’


Categorias